Lisboa, 27 de Março, 2008.
Fala-me dos Homeostéticos
Produzíamos muita coisa, como acontece em todas as coisas deste género. Depois vêm os historiadores e fazem histórias muito bonitas, outros fazem histórias muito pouco interessantes.
Em 2004, fizemos a exposição em Serralves, foi uma iniciativa nossa, com interesse também da Marta Moreira. Tivemos alguma resistência interna, tivemos problemas na montagem, a pessoa que estava encarregada do catálogo fez uma série de obstruções, depois meteu férias, o catálogo foi impresso com as cores todas trocadas, foi um problema topográfico, que depois acabou por correr bem, refizeram o catálogo de um dia para o outro.
Eu quando fui para a escola já estava confiscado a trabalhar com outras pessoas...
Pois, a Homeostética surgiu no contexto da ESBAL, vocês juntavam-se todos no átrio...
Não era assim tanto no átrio, o que aconteceu foi: (agora vou fazer a minha versão que é uma versão parcial.) Eu quando fui para a escola já estava confiscado a fazer qualquer coisa, a trabalhar com outras pessoas e aconteceu, conheci uma pessoa (não me lembro do nome), com quem fiz um primeiro grupo os Neo-Canibal, também entrava nesse grupo o Manuel João Viera, filho do João Vieira, que tinha sido meu professor na Sociedade Nacional de Belas Artes e com o qual já mantinha uma relação, para além de que já o conhecia desde miúdo, desde os 12, 13 anos, a seguir ao vinte e cinco de Abril, digo miúdo... ele é da minha idade, um mês mais novo, mas pronto, era um tipo que brincava com bonequinhos, depois fazia umas bandas desenhadas de um rato, O Super Tarado Sexual (uma coisa tipo Robert Crumb); era uma personagem meio criança mas depois com este lado já mais adulto (ele se calhar ainda é um bocado assim). Depois na ESBAL ouve outra pessoa com quem eu me dei, não estava virado sequer para fazer pintura e dizia constantemente “ Eu odeio Arte de vanguarda!”, era o Pedro Portugal, dizia “Arte de vanguarda é feio.”,era um tipo que ía para design gráfico supostamente, depois no meio disso surgiu a ideia de fazer uma revista que estivesse ligada a escola e foi ele que apareceu com a palavra Homeostética, começamos a espalhar uns cartazes que enunciavam a chegada da revista. Basicamente a Homeostética era uma ideia de uma revista, que tinha haver com complexidade, com coisas que só depois voltaram a ser faladas mais nos anos noventa. A coisa foi evoluindo eu, o Manuel João, o Pedro Portugal... e entretanto havia um grupo com quem fazíamos uns filmes ao fim de semana, eram todos designers, o Filipe Alarcão, o Silva Dias, o Francisco Ferro, percussionista dos Ena Pá 2000, mais uma serie de pessoas que costumavam passar connosco uns fins de semana em Azeitão, hoje em dia são realizadores de cinema. Sempre que havia férias ou períodos livres maiores íamos para umas quintas com casas abandonadas, uma do Pedro Portugal na Capinha, outra ao pé de Chaves, em Vidago, Aneilhe, andávamos aí a circular de bicicleta, de automóvel, de comboio, daqueles comboios que havia, que andavam para aí a trinta à hora, que as pessoas iam à varanda, (isso tem algumas fotografias no catálogo) e era esse o espírito.
Depois ouve uma pessoa com em eu me comecei a dar, (eu na altura era um bocadinho pretensioso e andava ali sempre em cima das pessoas) achei que tinha haver um bocadinho connosco, e estava ligado ao teatro (havia um grupo de teatro nas Belas Artes, eu ía de vez em quando lá pondo os pés) era o Xana. O Xana apesar de ser um bocadinho mais velho, tinha haver connosco os três. No verão, eu e o Manuel João fomos ter com ele ao Algarve e andamos para lá a tocar nas ruas. Depois resolvemos fazer um exposição no principio do ano lectivo, Outubro, Novembro do ano de 82 , quando estávamos a decidir acerca dessa exposição houve até uma espécie de duelo entre o Manuel João e o Cavalheiro, um tipo que fazia umas bandas desenhadas, fazia desenhos de rua para os turistas, ainda hoje vive de ilustração infantil, ele tem imenso jeito para isso, fazia parte do grupo da linha, com o José Eduardo Rocha, o R.I.P., ele não era pintor, era uma personagem um bocado naife, entrava como actor nos nossos filmes.
Ainda no contexto da ESBAL, apareceu por lá um artista, que estava assim um bocado fora do esquema mas que acabou por fazer parte do nosso grupo, era o Ivo, era muito produtivo, fazia umas pinturas um bocado abstractas, não conseguia desenhar académico, tinha uma falta de jeito enorme e dentro do nosso ano era um tipo que já tinha mais anos de trabalho, tinha um trabalho mais maduro e acabou por ser arrastado para a exposição. Primeiro que fizéssemos a exposição, ainda demorou, eu lembro-me que havia uma sala da associação de estudantes que estava fechada à algum tempo, tinha havido uma exposição de arte postal ou qualquer coisa assim do género, e que resolvemos reabrir para fazermos exposições, para incentivar toda os alunos a expor lá, fez-se a abertura dessa sala na altura em que houve a exposição na Sociedade Nacional de Belas Artes do Depois do Modernismo, uma exposição organizada pelo grupo da SEC (secretaria do estado e da cultura), o Julião Sarmento, Cerveira Pinto, Leonel Moura, Luis Serpa da Galeria Cómicos, os artistas do costume, o Ângelo, o Lapa, no caso deles era o regresso à figuração, e nós acabamos por fazer uma exposição com outros artistas além dos Homeostéticos, eu, o Xana e o Manuel João, onde foi feito pelos alunos do quarto ano, um painel gigante de 7m e qualquer coisa, As Suecas, com colagens, depois havia mais artistas com coisas ao meio da sala, a exposição chamou-se Onze Anos Depois. Teve alguma visibilidade, porque houve uma serie de conferencias apareceu lá o José Armando Uchela, nessa altura nos debates, entrei um pouco em diálogo com o Ernesto Sousa, e acabei por ter uma relação estreita de amizade com ele, porque alinhei em posições dele, contra as posições dominantes da altura, que eram um bocado contra o trabalho de grupo, a favor de atitudes individualistas, eram quase as teorias do Broudrilhard e as teorias da simulação: - não havia nada para acontecer de novo,( isto é engraçado, uma pessoa como o José Armando Uchela assumir estas posições) só restava fumar ópio, mas é compreensível, na altura estavam em turmados nessas opiniões por uma questão de sobrevivência, mas depois mudaram; essa exposição foi em Fevereiro de 1983, depois acabámos por fazer a exposição Homeostética, mais ou menos como abertura de ciclos de exposições em meados de Maio desse ano. Na altura fizemos para a exposição uma espécie de coisa musical, (muito má) uma daquelas coisas, gravadas naqueles gravadores de bobines, (uma coisa assim á John Cage eu até queria meter isso na exposição em Serralves) que era uma mistura de sons de maquina de lavar loiça, com pandeireta, o Xana depois também juntou uns sons da rua que tinha capturado no Terreiro do Passo, íamos pondo uns discos, íamos tocando não sei quê, íamos recitando, fazendo barulhos com as gavetas, era uma espécie de banda sonora que acompanhava a exposição, também tínhamos uma espécie de hino, cantado em coro, que era hino da RTP do início da emissão e pronto trabalhamos as nossas memórias, coisas que tinham haver com a nossa infância, uma parodia ao meio todo, no meio de uma atitude que estava a surgir um bocado séria, ligada ao comercio, nós por um lado tínhamos uma relação com o nosso passado português irónica, assumíamos o nosso provincianismo em relação ao internacional e ao mesmo tempo tínhamos um certo desprezo pelo mainstream, todas estas ambiguidades apareciam no nosso trabalho assim como a nossa relação com o Ernesto, há um texto, que fala das relações de objectos estranhos e as coisas mais de lobby, a exposição chamava-se Um Labrego em Nova Iorque, e insistimos muito no trabalho em grupo, estas coisas de andarmos de um lado para o outro, todos uns a falarem com os outros, numa espécie de alegria festiva que de certa forma fazia o racord com o Ernesto Sousa, a nível de teorias também, só que eram misturadas com outras coisas, com a ideia de canibalismo, uma espécie de neo dadaísmo relaxado, (mais para o consumo privado do que para outra coisa) penso que tem haver com a nossa geração, donde também podemos incluir pessoas como o José Eduardo Rocha, o Rui Zinc, que viveram o pós 25 de Abril numa versão em banda desenhada, e é a relação de banda desenhada com a revolução que cria este lado mais geracional.
E as exposições, como surgem?
As exposições... A primeira, em Maio de 83, foi aquela com a banda sonora de que falei, feita com o que a gente andava a fazer na altura, cada um tinha a sua coisa; a segunda foi a tal Um Labrego em Nova Iorque, em Dezembro de 83 já tínhamos um bocadinho mais de linguagem tomada, mas também tinha muito do que andávamos a fazer, a terceira aconteceu em Portimão e intitulava-se Se em Portimão Houvesse Baleias, foi em Maio de 84, uma altura em que todos nós começamos a ser integrados no circuito, foi super rápido e super chato. Depois ouve uns problemas entre nós, aquelas coisas que acontecem sempre... Foi um período em que as coisas estavam um bocadinho mornas e foi aí que apareceu o Fernando Brito, que era uma pessoa mais velha, tinha acabado as Belas artes, nós conhecíamo-lo de lá, era amigo do José Eduardo rocha, fazia parte tal grupo RIP, era conhecido pelo profeta, era um tipo que tinha a mania de carros antigos, passava a vida a tocar e tinha uma atitude um bocadinho estranha, meio anarquista, meio niilista e fazia umas pinturas hiper-realistas com aviões, carros, e cenários de arquitectura modernista, ele estava sempre a querer entrar para o nosso grupo, e a certa altura comecei-me a dar com ele e comecei a integrá-lo em projectos de revistas, foi o período de renascimento de uma coisa que estava moribunda. Foi uma segunda vaga. Tínhamos o projecto da revista Os Filhos de Átila, íamos fazer o numero três, com o Fernando Brito já tinha que ser com um design especifico...
E os manifestos que aparecem no catálogo de Serralves, o design, o tipo de letra era dele?
Sim o tipo de letra foi ele que criou. Depois eu continuava a dar-me com o Manuel João e fizemos uma revista Homeostética que era Os Carro Ilustrado, também era muito mau ,era assim o pior que a gente conseguia fazer.
Em finais de 85, princípios de 86, convidaram-me para fazer uma exposição e eu propus uma exposição Homeostética, era a quarta e foi em Coimbra na CAP (Círculo de Artes Plásticas), chamava-se Educação Espartana, que era uma exposição pseudo-conceptual em alguns aspectos noutros não, fizemos uma sessão em que espezinhamos o Fernando Brito na escadaria, fizemos umas fotografias engraçadas. Foi um ano muito intenso, em que nós não passamos muito tempo na escola, apesar de ser o nosso último lá. Houve uma exposição em Amesterdão com alguns dos Homeostéticos, estivemos lá umas três semanas, fomos convidados por uma escola de artes à margem, porque eles queriam fazer um inter-cambio com Portugal, mas depois não conseguiram, tentaram com as Belas Artes, mas as Belas Artes na altura era assim o mais casapiana e académica possível, depois tentaram com o Arco, com quem fizeram um protocolo e levaram o Ivo, o Francisco Rocha, escultor, depois um aluno de fotografia, aquelas coisas um artista de cada área, nós arranjamos maneira de ir lá parar, ficamos numa casa ocupada, conseguimos uma bolsa da Gulbenkien para fazermos a viagem e podermos levar as obras, arranjamos um pé de meia para sobrevivermos e assim foi. Foi uma exposição engraçada. Depois fomos para Madrid, esse ano o Arco foi em Abril. Estava frio e ficamos numa pensão muito rasca, lembro-me também que havia uma crise internacional por causa do Kadafi e do Ronald Regan, era uma iminência de uma nova guerra, havia troca de insultos, em que um deles chamava ao outro “perro rabioso” (isto nos jornais espanhóis), e era neste contexto, a Guernica tinha regressado a Madrid, tinha estado em Nova Iorque durante uma série de anos, eu lembro-me que fomos vê-la, foi aí que surgiu a ideia de fazer-mos peças enormes, colossais que apresentamos na exposição Continentes, no fundo foi a nossa exposição de fim de curso, mas não foi nada disso, porque nós na escola éramos um bocado mal vistos, éramos uns selvagens que trabalhávamos nos corredores, porque as salas de aula eram pequenas. Houve um período que tivemos bastantes problemas. Na exposição Continentes convidamos o Filipe Alarcão para fazer uma grande secretária, convidamos a Inês Simões, que era pintora mas que acabou por enveredar por o mundo da moda, fizemos um concerto de Ena pá 2000, e um acontecimento mediático, isto na Sociedade Nacional de Belas Artes, que era um local emblemático, tinha sido lá a Alternativa Zero do Ernesto Sousa, depois os Arquipélagos, do Pedro Cabrita Reis e seus os amigos e a seguir nós, fizemos o catálogo mais ou menos com o mesmo tamanho do deles, havia pressupostos teóricos por trás da nossa exposição, era dedicada ao Ernesto Sousa, não tina os currículos, não tinha o aparato de legitimação que tinha os Arquipélagos, era mais frontal, mais de imagens, foi uma exposição com bastante força, podemos dizer que foi a exposição terminal, mas também foi a exposição onde estava tudo presente; arranjamos um sítio enorme para trabalhar dois ou três meses, onde as peças tinham todas um certa influência, tinham citações umas das outras, e depois a palavra continentes a falar de uma certa interacção, a teoria de universo ser um cubo, depois a ideia do 6=0, esta tudo sintetizado ali no meio. Nessa exposição talvez a pessoa que teve menos envolvida foi o Xana, que estava no Algarve e tinha estado esse ano em Veneza, estava assim numa atitude mais de vedeta mas pronto fez as suas peças, que eram peças engraçadas, umas esculturas coloridas feitas de cartão, não sei onde é que estão, desapareceram mas há imagens no catálogo de Serralves. Na montagem tive uma discussão com o Xana, é daquelas coisas que acontecem, faltava uma hora para a inauguração, ele estava a ser intransigente com questões que tinham a ver com a montagem e as outras pessoas já estavam a ficar chateadas, vieram me pedir não sei quê e eu que sou uma pessoa geralmente muito calmo e sossegadinho cheguei lá e dei uns gritos, depois da inauguração disse-lhe: - É pá ó Xana, não nada chateado contigo, tive que gritar, para ver se isto funcionava. Mas acho que ele ficou chateado comigo, já tinha havido umas fricções e ele ficou a acumular, continuamos a dar-nos, mas o ambiente foi um bocadinho esfriado.
No Expresso diz que as vossas intervenções terminaram em 88
Isto foi em 86, ainda estamos em 86, o que aconteceu depois, foi que... esta coisa com o Xana estava um bocadinho... Passados uns meses eu, o Pedro Portugal e o Manuel João Vieira conseguimos alugar uma casa, a mãe do Manuel comprou uma casa e nós pagava mos lhe uma renda. É a casa onde ele vive agora, passou a ser o nosso atelier, o Manuel ficou atrasado um ano na escola, mas como tínhamos o atelier, continuávamos a trabalhar juntos ... estava sempre montes de gente por lá, o Fernando Brito também costumava aparecer. Nós chamávamos aquilo Fundição, depois mais tarde passou a ser a Fundição 2. Havia dois grupos rivais era eu e o Manuel João Vieira versus Fernando Brito, Pedro Portugal, tínhamos um projecto de exposição chamado Complexidades. (continua...)